quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O velho e a saudade

Por Jairo Marques
Crônicas


O velho e a saudade
Fazia uns três meses que ele não me ligava para repercutir o calorão, para falar mal da Dilma ou para dizer que a caixa onde guarda meus textos em papel-jornal está transbordando. Mas eu sabia que ele precisava de algum tempo, de algum silêncio para se aprumar novamente diante da nova vida.

– Ela não conseguiu terminar o vestidinho que fazia para a sua Elis, filho. Ficou aqui, pela metade, igual eu também fiquei. Está muito difícil aguentar a saudade, foram 50 anos de amor. Sinto como se escutasse a voz dela saindo pelas paredes.



Meu avô do coração (nada temos de parentesco real e jamais nos vimos pessoalmente, apenas trocamos missivas e falamos ao telefone) perdeu a companheira para a morte e, como qualquer outro velho octogenário que amou demais, ficou com o coração em descompasso e a cabeça transformada em turbilhão de interrogações sobre o futuro.

Desatei como pude o nó na goela e fui pensando em algo razoavelmente acolhedor para dizer a meu avô. Reparei, porém, que só bobagens saíam do meu saco de possíveis palavras de acolhimento para a inédita situação.

– O senhor ainda tem muita lenha para queimar, vô; na internet tem tanta distração hoje em dia, que tal curtir umas fotos bonitas no Instagram?
Diante de meu fracasso, ele mesmo veio com um remendo de solução para estancar nosso mimetismo de emoções sinceras.

– Talvez eu vá passear em Niterói, ver meus outros netos. Tem sempre alguém me ligando, me chamando para fazer um passeio. Até me distraio um pouco, filho, mas a falta que ela me faz machuca, não passa. Nunca passa.

Os versos de Alceu Valença sobre a solidão parecem ser ainda mais pontiagudos quando são entoados na radiola dos velhos: “A solidão é fera, a solidão devora/ É amiga das horas, prima-irmã do tempo/ E faz nossos relógios caminharem lentos/Causando um descompasso no meu coração”.

Pouco se sabe sobre como agir de maneira efetiva para amparar o sentimento de abandono profundo de alguns idosos quando perdem seus parceiros de trajetória. Muitas vezes, a preocupação logística –quem dará o remédio, quem auxiliará com a senha do banco– sobrepõe-se a uma preocupação mais acolhedora, como ajudar a dar banho no cachorro ou pedir para contar aquela história hilária da tia que torceu o rabo da porca.

Ver a companheira ir embora na velhice pode significar expôr-se à descompostura diante do micro-ondas em que só ela sabia mexer, pode representar perder o ânimo de manter o ninho vazio na esperança de que, todos os dias, seja primavera, pode atazanar o pouco sono que resta porque o corpo não se acostuma com a ausência daquela mão que acalentava o peito no derradeiro momento de fechar os olhos.

Para os envolvidos, resta preparar com afinco um elixir poderoso que atenue essa saudade sofrida e essa solidão desoladora. Uma boa alquimia sempre nasce com disposição de entender e de ouvir. Não há razão, nos tempos da comunicação extrema, para apenas contemplar os velhos em seus refúgios de lembranças e não tentar trazê-los para novas possibilidades. Recomeçar é sempre possível.