segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Zika, talidomida e as catástrofes evitáveis

Por Patrícia Campos Salles.
FOLHA SP


Zika, talidomida e as catástrofes evitáveis
No dia 14 de maio deste ano, o então ministro da Saúde, Arthur Chioro, confirmava a chegada do vírus zika ao Brasil, mas tranquilizava o público.

"[A entrada do vírus no país] não preocupa. É uma doença benigna e que tem cura. A nossa preocupação é a dengue, porque a dengue mata", disse Chioro.

Na época, o zika era chamado de "dengue light", porque era parecido com ela, mas muito mais benigno: provoca manchas no corpo, coceira, febre baixa, dor de cabeça, dores musculares e nas articulações.






Mas isso é tudo: os sintomas não duram mais de sete dias e não há maiores riscos, era a garantia.

Seis meses depois, surgem os primeiros indícios de que o zika vírus, caso contraído durante a gravidez, pode causar microcefalia em bebês e pode estar ligado a complicações neurológicas e à síndrome de Guillain-Barré em crianças e adultos.

No ano passado, em todo o país, foram registrados 147 casos de microcefalia. Neste ano, há 1.761 casos sob investigação no Brasil. Ou seja, toda uma geração de "filhos do zika" está nascendo, crianças que muito provavelmente terão grave retardo mental e outros problemas. Nasceram de mães que contraíram o vírus na gravidez e muitas nem se preocuparam –afinal, a doença era tida como "light".

"Estamos em situação de emergência nacional. Isso não ocorria desde 1917 com a gripe espanhola. A situação é bastante grave", disse o atual ministro da Saúde, Marcelo Castro, nesta semana.

É um pouco tarde para dizer isso. Relatórios do European Center for Disease Prevention and Control (ECDC) de novembro do ano passado já advertiam que, após a epidemia de zika na Polinésia Francesa, em 2013-2014, havia uma elevação significativa no número de casos de microcefalia e complicações neurológicas.

Isso deveria ter alertado as autoridades para a possibilidade de o zika vírus não ser tão "light" assim.

O que o governo está fazendo? Não muito.

O Ministério da Saúde recomenda a gestantes que usem repelente (embora não haja distribuição desses na rede pública), calça comprida e manga longa. Algumas autoridades aconselham mulheres a adiar a gravidez.

Ao mesmo tempo, Estados do Nordeste, a região mais afetada, haviam cortado as verbas para o fumacê contra o mosquito transmissor da dengue e do zika.

Parece que a gente não aprende com tristes lições da história.

No fim dos anos 50, foi lançada na Alemanha uma "droga milagrosa" que funcionava como sedativo, calmante e aliviava os enjoos das grávidas. A talidomida chegou a ser anunciada como remédio "completamente inócuo, completamente seguro".

Três anos após o lançamento da talidomida, em 1960, começaram a ser relatados casos de crianças que nasciam com deformidades graves, com braços ou pernas encurtados e ausência completa de membros, ou mãos que eram ligadas diretamente ao tronco.

As mães haviam ingerido talidomida nos primeiros três meses de gravidez para combater enjoos. Eram os "filhos da talidomida".

A Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida (ABPST) relata que, apesar de ter sido retirado do mercado na Alemanha e no Reino Unido no final de 1961, o medicamento continuou sendo vendido no Brasil como uma droga "isenta de efeitos colaterais" pelo menos até junho de 1962.

Ainda segundo a associação, a talidomida só foi de fato retirada do mercado brasileiro em 1965, ou seja, com pelo menos quatro anos de atraso, por "desinformação, descontrole na distribuição, omissão governamental, automedicação e poder econômico dos laboratórios".

Esses atrasos são inaceitáveis.