terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A proximidade de Auschwitz

Por Alberto Dines.
Publicado no jornal El País em 31JAN2015


A proximidade de Auschwitz
O trabalho liberta — proclama em alemão o portão de ferro do campo de extermínio nazista de Auschwitz, em território polonês. A sentença é intrinsicamente totalitária: trabalho-escravo não liberta. O que nos torna efetivamente livres é a liberdade, este conjunto de presunções, sensações e certezas de que temos o direito de escolher em todas as esferas e dimensões - espacial, temporal, física, jurídica, psicológica e espiritual.


Lajos Erdelyi, de 87 anos, posa com um desenho feito por um amigo do campo de extermínio em Budapeste, 13 de janeiro de 2015. Erdelyi foi enviado a Auschwitz-Birkenau em maio de 1944 e mais tarde foi levado para outro campo. Quando foi libertado pesava menos de 30 quilos, tentou chegar em sua casa caminhando mas desmaiou, e foi levado a um hospital por um agricultor. LASZLO BALOGH (REUTERS)




tocante cerimônia da última terça-feira para rememorar os setenta anos da desativação da mais famosa fábrica de horrores dos últimos 500, talvez seja a última que contará com a presença de sobreviventes. A efeméride do 80º aniversário (em 2025) dificilmente terá testemunhas e testemunhos vivos.

Não apenas por isso Auschwitz ganhou relevância no noticiário destinado a uma humanidade cada vez mais distraída e desnorteada. Auschwitz reapareceu empurrada pelo sangue derramado nos massacres de Paris.

Também as chacinas de Paris não concernem apenas aos jornalistas-desenhistas do Charlie Hebdo, aos policiais que cuidavam da sua segurança ou aos judeus religiosos que estavam no empório kosherna véspera do descanso sabático. O equívoco de sepultá-los no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, não dá o direito de remeter aquelas brutalidades para o remoto e absurdo Oriente Médio.

Cartoon de Wolinsky


Havia dois judeus na redação do semanário (o desenhista George Wolinsky e a psicanalista Elsa Chayat), enterrados como os companheiros na França laica, democrática, que foi às ruas solidárias com os dezessete compatriotas assassinados e para manifestar-se contra a intolerância religiosa. 

Auschwitz não concerne apenas aos judeus, nas suas câmaras de gás foram exterminados ciganos, eslavos, católicos, protestantes, comunistas, anarquistas e homossexuais. O objetivo da cúpula nazista era a Solução Final da Questão Judaica como primeiro passo para implantar uma Europa unificada pelo terror totalitário. Nem todos os sobreviventes que compareceram à cerimonia em Auschwitz vieram de Israel, alguns estão nas Américas (Brasil inclusive), África do Sul, Austrália.

Eva Fahidi, de 90 anos, posa com uma foto de sua família, assassinada no campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, em Budapeste, 12 de janeiro de 2015. Fahidi tinha 18 anos em 1944, quando ela e sua família foram levados de Debrecen para Auschwitz-Birkenau. LASZLO BALOGH (REUTERS)

O périplo ganhou inesperada escala e proximidade – Buenos Aires – com a morte do promotor Alberto Nisman, que acusava formalmente a presidente Cristina Kirchner e o seu chanceler, Hector Timerman, de negociarem com o governo iraniano ações que culminariam com a atenuação das penas e castigos dos responsáveis pela explosão do carro-bomba em frente ao prédio da AMIA, Associação Mutual Israelita Argentina, que matou 85 cidadãos argentinos.

A chacina de 1994 perpetrada, segundo sentença da justiça argentina, por agentes do Hizbullah e da Guarda Revolucionária iraniana, visavam a segunda maior comunidade judaica das Américas. A fuga para Israel de Damian Pachter, o jornalista que primeiro anunciou o assassinato de Alberto Nisman e desde então seguido por agentes e ameaçado de morte, não deve nos transferir para outras paragens. Com dupla nacionalidade e apenas a roupa do corpo fez uma escolha pragmática e imediatista.

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Israel não deve ser o único refúgio para os judeus perseguidos e injustiçados do resto do mundo. A atabalhoada e patética atuação da presidente Cristina Kirchner ora apontando para um suicídio ora para assassinato nos dias seguintes à descoberta do corpo de Nisman criaram profundo mal-estar na comunidade judaica. 

A sábia decisão de enterrar o promotor em lugar de honra do cemitério, perto do monumento em homenagem às 85 vítimas do atentado contra a AMIA e não na ala dos suicidas, evita que uma questão forense de capital importância seja decidida apressadamente no âmbito religioso-funerário.

O que agora começa a transparecer é o dramático e inexplicável atraso das forças políticas portenhas — sobretudo o ambíguo peronismo — em extirpar todos as ramificações e ramais deixados pela ditadura militar.

Anestesiados pela folia que se aproxima e por mazelas que proliferam esquecemos com frequência que Auschwitz ressuscita cada vez que vacila a democracia.

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