domingo, 3 de abril de 2016

A maconha será liberada no Brasil?

Por Demétrio Magnoli.
Folha SP - 20FEV


Ilha da negação

Enquanto escrevo, ali perto, à beira do rio, a maconha corre solta. Suponho, pelas aparências, que nesse povoado de praia no sul da Bahia, entre locais e turistas, só eu não fumo baseado. Logo mais, o Canadá se tornará o primeiro país do G7 a legalizar o comércio de cannabis. Nos EUA, a Califórnia apontou um caminho, permitindo a venda da droga para finalidades médicas. De 1996 para cá, 22 Estados, além do Distrito de Columbia, adotaram o estratagema, que funciona como disfarce para a plena legalização. No horizonte de um ano, provavelmente a proibição cairá em mais oito Estados. Na América Latina, depois do Uuguai, os parlamentos do México e da Colômbia preparam-se para derrubar as leis que criminalizam a mais consumida das drogas ilegais. Uma ilha de negação: em pouco tempo, eis o que o Brasil se tornará.




A The Economist (13 de fevereiro) compara os modelos regulatórios para o comércio de maconha implantados nos Estados americanos do Colorado e de Washington. No primeiro, a opção por uma tributação baixa deriva da prioridade de asfixiar o comércio ilegal. No segundo, a opção oposta responde ao objetivo central de desestimular o consumo. O debate informado sobre a cannabis ultrapassou os argumentos clássicos do proibicionismo, que enfatizam os efeitos da droga sobre a saúde e a falsa suposição de que ela induz ao consumo de substâncias ilegais mais danosas.



A maconha faz mal, mas drogas legais como o tabaco e o álcool têm efeitos tão prejudiciais quanto ela, ainda que diferentes. As correntes anti-proibicionistas refletem a experiência da "guerra às drogas". Elas aceitam o fardo, meramente hipotético, de que a legalização provoque algum aumento do consumo, em troca da supressão dos custos sociais da repressão ao tráfico ilegal. Na América Latina, onde se estabeleceram poderosas organizações do narcotráfico, o argumento para o encerramento da era proibicionista é ainda mais convincente. Da criminalização decorre o encarceramento ritual de pequenos traficantes, o desvio de esforços policiais para o combate a uma prática disseminada, os incentivos financeiros à colaboração de policiais com o crime e, sobretudo, a reserva de um mercado bilionário aos cartéis do tráfico.



A legalização da maconha não é uma varinha mágica. O tráfico criminoso opera com diversas drogas ilegais, especialmente a cocaína e, no caso do Brasil e outros países, o crack. Contudo, o comércio de cannabis representa cerca de metade de um mercado de drogas que movimenta em torno de US$ 300 bilhões ao ano. Uma radical redução das rendas seguras da venda de maconha assestaria um golpe significativo nos cartéis do tráfico. No México e na Colômbia, é esse cálculo pragmático que sustenta o projeto de legalização. O proibicionismo nos EUA provavelmente cairá devido à sua progressiva erosão no âmbito estadual, mas a estabilização geopolítica do México e da fronteira sul deveria funcionar como argumento para a legalização da maconha na esfera federal.



Uma ilha nas Américas. No Brasil, o tema da maconha estiolou-se num debate patético sobre a ideia de descriminalização exclusiva do consumo. A proposta imoral, marcada por um corte de classe evidente, é tirar a polícia do encalço dos consumidores do "asfalto", enquanto seus fornecedores do "morro" continuam sujeitos à perseguição. Trata-se de conservar as prerrogativas e o poder de policiais-bandidos e de narcotraficantes na "guerra às drogas", oferecendo um especial salvo-conduto aos jovens de classe média interessados apenas em algumas horas de recreação. Cenografia: na nossa ilha mental, tudo gira em torno do imperativo de limpar a sujeira que respinga sobre as fachadas.

A guerra à maconha aproxima-se de seu outono. Por aqui, enquanto os baseados passam de mão em mão, persistimos em financiar as armas do crime. Até quando?