domingo, 27 de dezembro de 2015

Chega de patrulha

Por Carlos Brickman.


Chega de patrulha
Millôr Fernandes, um gênio brasileiro, é o autor da melhor definição de civilização: 

“Todo homem tem o sagrado direito 
de torcer pelo Vas­co 
na arquibancada do Flamengo”.


O episódio em que Chico Buarque foi abordado na rua por um grupo de pessoas que questionava sua posição petista é exatamente o contrário do que se define por civilização: Chico Buarque tem o direito sagrado de ser petista, comunista, de achar que Fidel Castro é o máximo, de gostar de Maduro e Evo Morales, e ninguém tem nada com isso, exceto em discussões políticas. E para haver uma discussão política é preciso que os dois lados concordem em discutir. Gritaria de madrugada no meio da rua, com insultos, definitivamente não é a maneira de iniciar uma discussão política.




O problema é que não podemos condenar a metade da guerra: é preciso condenar a guerra inteira. Não está certo insultar Chico Buarque por suas ideias, nem expulsar Guido Mantega a gritos do hospital onde tinha ido tratar a mulher, nem mandar a presidente da República a locais normalmente destinados, pela torcida, a árbitros de futebol. Mas também não está certo, como já ocorreu (e não motivou grandes protestos), ameaçar o grande chargista Chico Caruso de “esculacho” – ou seja, de juntar em frente à sua casa uma vociferante manada para dirigir-lhe insultos – pelo crime de ter feito uma piada com a qual os petistas não concordaram. Também não está certo o assédio moral – com participação de idiotas internacionais – a Caetano Veloso e Gilberto Gil, por sua decisão de realizar um show em Israel, país com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas. Como não está certo usar as redes sociais para difamar políticos de outros partidos que não o PT, com insultos como “cheirador”, “vagabundo”, “canalha” – não desmintam, por favor. Essas coisas estão arquivadas direitinho, até para que se saiba quem presta e quem não presta.

Arte de Heitor


Pior ainda é quando os responsáveis pelos insultos ocupam cargos de importância e utilizam o tempo do trabalho, mais o equipamento posto à sua disposição, basicamente para a militância partidária difamatória, e deixam de cumprir as funções essenciais para as quais são pagos.

Este colunista se sente muito à vontade para pedir que o debate político se civilize. Não concorda com nenhuma ideia de Chico Buarque, mas continua fã da maioria esmagadora de suas composições. Não concorda com José Dirceu, mas todos os contatos que teve com o líder petista foram cordiais, amenos, agradáveis. Jamais deixará de gostar da obra de um intelectual por discordar de suas posições políticas (e jamais passará a gostar da obra de outros por concordar com as posições políticas que assumam). Por que não?O sujeito pode ser politicamente cego, mas não deixa de ser inteligente em outros aspectos da vida; e não deixará de ser amigo por discordâncias partidárias. Se deixar de ser amigo, é porque amigo nunca foi: tratava-se apenas de um canalha.




No grupo de amigos que estava com Chico Buarque, um nome chama a atenção de quem tem boa memória: Cacá Diegues. Cacá, excelente cineasta desde o Centro Popular de Cultura da UNE, nos tempos em que a UNE era uma entidade política e se preocupava com o país), um dos diretores de “Cinco Vezes Favela”, um dos filmes que marcaram o início do Cinema Novo, diretor do notável “Bye, bye, Brasil”, musicado, a propósito, por Roberto Menescal e Chico Buarque, tem o irremovível DNA da esquerda. Mas foi ele que denunciou as patrulhas ideológicas, movidas por fascistas de esquerda contra todos os artistas que não partilhavam de suas ideias. Na época, lembremos, as patrulhas atingiram até mesmo Elis Regina; e liquidaram a carreira, e a vida, de Wilson Simonal, que por mais erros políticos que tenha cometido foi um excelente cantor.

Não é terrível que Cacá, com uma história politicamente mais rica e matizada que a de Chico, seja vítima, tantos anos depois, de uma patrulha ideológica formada por jovens que provavelmente nem sabiam com quem falavam? Não, não é exagero: o pai de um dos rapazes que insultaram Chico disse que teve de lhe contar quem é Chico e qual sua importância para a música popular brasileira.



Chega disso! A política, para ter sentido, exige conversa, muita conversa. A munição da política, ensinava Ulysses Guimarães, é a saliva. Se não houver conversa, não há política: há enfrentamento, há a vitória da força bruta. É um filme cujo final  conhecemos: os bandidos, seja qual for seu partido, vencem; e quem morre somos nós.

Chico Buarque não é inatacável, claro. Quem se diz contra ditaduras e jamais disse uma palavra negativa a respeito de Fidel Castro tem tudo para ser atacado. Este colunista, fã do compositor Chico Buarque, que o considera um novo Noel, prefere não se preocupar com as posições políticas do artista. Mas Millôr Fernandes, que inicia esta nota, pode encerrá-la, com sua análise das posições políticas de Chico Buarque: 

Eu desconfio de todo idealista 
que lucra com seu ideal”.