quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Casal perfeito é lenda

Por Xico Sá.
Transcrito do El País
Crônicas

Casal perfeito, famoso ou anônimo é lenda
O “casal perfeito” é apenas uma definição perversa para ampliar o futuro escândalo conjugal na praça.

Quando o casal perfeito do prédio ou do bairro se separa, o cruel vizinho saliva de felicidade, a baba de veneno e sarcasmo chega a escorrer no canto da boca. Alguns amigos da onça soltam fogos, os rojões da vingança riscam os céus do subúrbio, é uma festa, um zunzunzum na repartição ou na firma. Quem mais comemora nesse momento, pode prestar atenção, é aquele marido canalha, sujeito nada virtuoso, cansado de ouvir a própria esposa fazer o samba-exaltação sobre as qualidades do homem exemplar que morava ao lado: “Está vendo, mulher, a casa do maridinho certinho caiu, desmoronou”, diz.



O casal perfeito é uma lenda urbana. Seja na Belém da dupla pop Joelma e Chimbinha, na Los Angeles/Nova York de Tom Brady e Gisele Bündchen... Seja na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Na riqueza ou na pobreza, na saúde ou na doença, famoso ou sob o véu e grinalda do anonimato.

O casal perfeito é uma ficção, no cinema ou na publicidade de salsicha. O casal perfeito é uma fantasia necessária para o público do mundo inteiro. Uma obsessão midiática ao ponto da revista Vanity Fair divulgar anualmente uma lista dos pombinhos mais felizes dos Estados Unidos. Brady e Bündchen ganharam medalha de bronze no último ranking, perdendo apenas para Beyoncé/Jay-Z e os imbatíveis Obama.

Este não é um texto de fofoca, mas uma crônica de salão e de costumes –conceito chique usado pelo escritor francês Balzac (1799-1850) na sua A Comédia Humana. E você sabia que o cara que originou o termo balzaquiana não deu sorte com o assunto, embora tenha desejado ser um bom marido? Casou e no mesmo ano bateu as botas. Havia namorado 15 anos por carta com esta mesma moça, a polonesa Eveline Hanska.

Não, esta não é uma coluna de mexericos, mas precisamos reviver as cenas dos últimos capítulos sobre as celebridades citadas:

Gisele e o jogador de futebol americano, como li aqui no EL PAÍS, estão em crise – nada que diga respeito ao suposto episódio do chifre da babá etc. Chimbinha e Joelma, que não saíram na Vanity Fayr porém são tão populares no Brasil quanto a caipirinha e a feijoada completa, também estão em ritmo de um tecnobrega de fim de casamento, um amor que durou 18 anos e 15 milhões de discos vendidos com a banda Calypso.

Quanto tempo dura um casal perfeito? O suficiente para render uma boa e milionária disputa perante o excelentíssimo juiz. Alguns casais midiáticos, todavia, esticam o casamento apenas para manter o tilintar da máquina registradora no lar doce lar. Vale tudo, no jogo entre evidências e aparências, como diria uma música do gênero breganejo.

O casal exemplar da anônima “vida como ela é” também prorroga o drama. Por questão moral: teme o olho dos vizinhos perversos que secavam aquele relacionamento modelo, como o marido canalha e invejoso que citei lá no começo desta crônica. É um peso, com ou sem fortunas e camas repartidas, carregar o fardo da virtude nas costas.
  
Para o casal perfeito do tipo “fofo”, fofo ostentação, a carga é mais pesada ainda, mesmo que os periquitos, de tão grudentos na sua algazarra de rotina, não percebam o perigo. Falo daquela dupla que até para a fila do “restaurante no kilo” vai de mãos dadas e troca beijinhos enquanto calcula as calorias da refeição.

Quero ver essa fofura toda é na hora de devolver o Neruda, como diz uma amiga irada com o emperiquitamento dos casais. Não, não se trata de uma mal-comida, como insultaria o coro machista, muito pelo contrário.

Devolver o livro do poeta chileno, com licença da sinédoque do caríssimo Chico Buarque, é aquela sofrida hora da divisão dos bens, trens e badulaques. Aí só resta bater o botar sem fazer alarde...

O casal perfeito, além de uma tremenda pretensão, é mesmo uma lenda urbana ou rural. Bom que assim seja. Casal bom é casal desobrigado do exemplo, do modelo, livre daquele cenário de propaganda de margarina – se bem que os anúncios amanteigados hoje em dia andam muito solitários ou apenas com uma mulher acompanhada de filhos, sinal dos novos modelos familiares.

O casal perfeito, normalmente, joga para o público, vende a ilusão do “até que a morte vos separe” do sacramento católico.

Casal bom é o casal bagaceiro, meio torto, “guache na vida”, errante e passional no romantismo, o casal que não faz questão de exibir virtudes ou dons superiores. Sabe aquela dupla que ninguém aposta um vintém ou um dólar furado? O julgamento da rua, do prédio, do bairro e da cidade é um só sobre os danados: esses dois não comem juntos o peru do Natal deste ano, não pulam as sete ondinhas no mar de Copacabana. Que nada, é o tipo de acasalamento que, no mínimo, cumpre lindamente a cartilha de Vinícius de Moraes, com um feliz e sincero “infinito enquanto dure”.