segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Janot coloca Cunha contra a parede

Por Helio Gurovitz.


A narrativa de Janot dará trabalho a Cunha
A denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tem um predicado inestimável nos tempos atuais: a clareza. Janot construiu uma narrativa sólida, em português compreensível, sem o juridiquês que costuma empestear o discurso de advogados, promotores e juízes. O processo do mensalão parece ter deixado claro para todos um fato simples: para acusar, é preciso saber contar bem a história. E a denúncia conta muito bem a história dos crimes imputados a Cunha, que Janot considera ser o “sócio oculto” do lobista Fernando Soares, o Fernando Baiano, nas falcatruas do petrolão.

Arte de CLAYTON


É uma história conhecida, a cobrança de propinas estimadas em US$ 40 milhões para liberar dois contratos de US$ 586 milhões e de US$ 616 milhões destinados à compra de navios-sondas das empresas MItsui e Samsung, usados pela Petrobras na prospecção e exploração de petróleo. A narrativa chegou aos procuradores por meio do depoimento de réus colaboradores, como o doleiro Alberto Youssef. O principal testemunho que sustenta a acusação e fornece a linha narrativa para a história foi dado pelo ex-executivo da empreiteira Toyo-Setal e representante da Mitsui Júlio Camargo, que só acusou Cunha em seu segundo depoimento, no mês passado. A advogada de Camargo, Beatriz Catta Preta, abandonou o cliente e a profissão, alegando ter sofrido ameaças. Cunha acusou Janot de estar em conluio com o PT com o intuito de convencer Camargo a mentir para derrubá-lo.

Arte de  PATER


Mas é um erro acreditar que a denúncia de Janot se baseia exclusivamente no depoimento controverso de Camargo. A narrativa está repleta de detalhes, resultados de investigação independente dos procuradores e da polícia a respeito dos fatos narrados. É essa profusão de novos detalhes que dá credibilidade ao que disseram os réus colaboradores e deixa Cunha e seus advogados diante de um desafio gigantesco para desmenti-los.

Janot esmiúça a negociação das propinas, realizada com o auxílio de Baiano e do então diretor da área internacional, Nestor Cerveró. Conta em detalhes a divisão do dinheiro em parcelas. Mostra as contas e empresas usadas para lavar o dinheiro em 40 operações bancárias no Uruguai, nos Estados Unidos, na Suíça e no Panamá, cada uma delas com número, data e conexão com os eventos narrados.

Arte de JORGE BRAGA


A denúncia explica minuciosamente como a interrupção no fluxo das parcelas, em 2009, levou Camargo a procurar a ajuda do doleiro Youssef para lavar o dinheiro devido a Cunha e Baiano. Mostra como isso foi feito por meio de uma complexa operação cambial até o final de 2010. Diante da incapacidade de honrar o que fora combinado, Camargo afirma ter procurado Baiano em 2011 para renegociar os valores – mas levou uma negativa. “Eu tenho um compromisso com o deputado Eduardo Cunha”, afirmou Baiano, segundo o depoimento de Camargo. Foi nessa ocasião, diz o depoimento, que Baiano relatou a dívida de US$ 5 milhões com Cunha e disse que ele criaria dificuldades se não recebesse o dinheiro devido.

A seca no fluxo do dinheiro tornou reais as ameaças de Baiano. Dois requerimentos, assinados pela então deputada Solange Almeida (ligada a Cunha), foram usados em julho de 2011 para pressionar a Mitsui na Comissão de FIscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados. Janot passa então a desmentir as três versões que Cunha deu para negar ser autor dos requerimentos. A denúncia dá uma aula a respeito do funcionamento do sistema de informática da Câmara. Revela os horários em que foram usados os computadores de Cunha e da deputada Solange. Faz uma análise comparativa do estilo de escrita usado por Cunha e Solange em outros requerimentos. Revela, com base na distância entre os gabinetes de Cunha e Solange, que não faria sentido ela ir até a sala dele para fazer o requerimento. Desmente, com o testemunho de técnicos, a versão de que a assinatura eletrônica de Cunha fora falsificada. E deixa claro por que o “Dep. Eduardo Cunha” dos requerimentos não pode ser outro senão o próprio deputado Eduardo Cunha.

Arte de SAMUCA


A narrativa prossegue com o trecho já conhecido, a respeito do encontro de Camargo com o ministro Edison Lobão na base aérea do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. A PGR confirmou a presença de Lobão no local na data e horário citados por Camargo. Apresenta o registro com placa do carro de Camargo, o horário de entrada e o testemunho do motorista que confirmou tê-lo levado ao aeroporto. “Eduardo, estou com o Júlio Camargo aqui ao meu lado, você enlouqueceu?”, disse Lobão para Cunha ao celular, de acordo com o depoimento de Camargo.

O próximo e decisivo passo, o clímax narrativo, foi a reunião no domingo, dia 18 de setembro de 2011, no edifício Leblon Empresarial, entre Cunha, Camargo e Baiano. A denúncia traz os registros do estacionamento em que ficou a Range Rover de Baiano, com sua placa e número de chassis. Conta que Baiano usou um aparelho Nextel para ligar ao dono da sala da reunião, seu advogado Sérgio Roberto Wayne. A Nextel confirmou que a antena usada para transmitir a chamada está localizada nos arredores do edifício. Novamente, o motorista de Júlio Camargo confirma ter ido buscá-lo no aeroporto e levá-lo de volta após a reunião.

Arte de CLAUDIO


O que ficou decidido, segundo Camargo, foi o pagamento de mais US$ 10 milhões, dividos meio a meio entre Baiano e Cunha. Janot mapeia então as transferências bancárias feitas a empresas de Baiano no exterior e a simulação de contratos de consultoria no Brasil. Coteja os valores com as planilhas usadas pelo doleiro Alberto Youssef para controlar as entregas de dinheiro em espécie feitas por seus “pombos-correios” – no caso, Jayme Alves de Oliveira Filho, conhecido pela alcunha de Jaime Careca, identificado nas planilhas como “Transcareca”.

Finalmente, Janot desvenda um ponto que, para Cunha, acaba sendo o mais comprometedor: duas doações para a igreja evangélica Assembleia de Deus, em agosto de 2012, somando R$ 250 mil. “Não há dúvida de que as referidas transferências foram feitas por indicação de Eduardo Cunha, para pagamento de parte do valor residual da propina referente às sondas”, escreve Janot. O diretor da igreja, diz ele, é Samuel Ferreira, irmão de Abner Ferreira, pastor da Igreja Assembleia de Deus Madureira, no Rio de Janeiro, frequentada por Cunha. Camargo, católico, nunca frequentou nem jamais doara um ceitil à Assembleia de Deus antes dessas transferências.

Arte de NEWTON SILVA


Com base nessa narrativa, Janot denuncia Cunha por corrupção e lavagem de dinheiro. Depois da denúncia, Cunha se disse “aliviado”, pois o caso finalmente passaria ao Judiciário. Caberá ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) dizer se aceita a denúncia, ouvir o que tem a dizer a defesa de Cunha e, depois disso, julgá-lo. É um processo que promete levar meses. Será interessante entender como a defesa fará para desmentir cada detalhe da acusação – o sistema de informática, os registros telefônicos, as placas de carro, as transferências bancárias, a doação à igreja etc. – e para atribuir tudo à fantasia de um delator, mancomunado com Janot e com o governo do PT.