sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Ai ai ai, e a culpada ainda é a Língua Portuguesa...

Editorial da Folha SP - 07AGO2015



Perdidos na tradução
Em diversos contextos teriam pouca importância equívocos como trocar "azeite" por "óleo", dizer "feriado" em vez de "dia não útil" ou escrever "outros brinquedos" onde se deveria ler "triciclos e patinetes" –todos oriundos de uma desastrada tradução da língua inglesa para a portuguesa.

Assumem outra proporção, todavia, quando figuram num acordo comercial em que se definem descontos nas tarifas de importação de mais de mil produtos.

Como mostrou o jornal "Valor Econômico", os três exemplos citados, ao lado de outros 202 erros de tradução, integram a versão brasileira de um tratado alfandegário assinado em 2008 pelo Mercosul e pela União Aduaneira da África Austral (África do Sul, Botsuana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia).


Arte de FRED


Aprovado pelo Congresso em 2010, o acordo seguiu para o Planalto, que deveria promulgá-lo. Isso não ocorreu, porém, pois diplomatas identificaram as falhas linguísticas –cometidas por empresa contratada pelo próprio Itamaraty. O Brasil é o único país da negociação que ainda não ratificou o documento, impedindo sua vigência.

Desfeita a lambança, o texto embarcou num lento périplo ao qual não faltaram obstáculos burocráticos. A edição corrigida deveria ser remetida ao Paraguai, onde são depositados todos os acordos do Mercosul. Ocorre que o país estava suspenso do bloco devido à destituição de Fernando Lugo da Presidência.

Armou-se, então, estratégia alternativa. A nova tradução foi enviada ao Uruguai, sede da Secretaria Administrativa, enquanto o Brasil buscava aval das demais nações.

Encerrados tais trâmites, o documento chegou à Casa Civil em julho de 2013. Sem motivo aparente, ficou estacionado até o mês passado, quando voltou ao Congresso.

Arte de THIAGO


O acordo mereceria maior atenção do governo brasileiro. Os países do outro lado do Atlântico somam um PIB de US$ 430 bilhões (o da Argentina monta a US$ 540 bilhões), com perspectivas de crescimento nos próximos dois anos (4%). O Brasil, ademais, vende sobretudo manufaturados a essas nações, numa relação que tem sido superavitária (US$ 524 milhões em 2014).

A displicência diante desse tratado mostra quão limitadas são as várias promessas de aumentar a participação brasileira no comércio mundial. Nesse, como em tantos assuntos, as autoridades parecem perdidas –e não só na tradução.