quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

João e Maria - uma história

Baú do Pilórdia - postado em 19.12.2010

João e Maria
Sivuca / Chico Buarque

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim


A melodia é de Sivuca e data de 1947. Sivuca a compôs aos 17 e usava sua valsa recém saída do forno para coroar as lindas princesas de seus sonhos com belas serenatas ao luar do Recife. O pião já não era seu brinquedo, seu bicho preferido tinha outro sexo e andava nua em seu país. Seu futuro parceiro, na época com 3 anos, ainda mal armava seu bodoque.

E, por trinta anos, assim seguiu esta música, sem nome, servindo às serenatas de seu autor. Até que o dramaturgo Paulo Pontes, que estava organizando o repertório para uma apresentação de Elizeth Cardoso no Canecão, decidiu que ao show cairia bem uma parceria entre o já consagrado Chico Buarque e o Mestre Sivuca. Resolveu promover o encontro.

Sivuca, pensando no vozeirão da Divina Elizeth, desenterrou sua valsa romântica. Mas Chico estava em outra. Estava mergulhado no universo infantil, havia acabado de fazer a versão para o português do musical italiano “Saltimbancos”.

A “idade” da música também influiu, como explica o próprio compositor em entrevista a Geraldo Leite (Rádio Eldorado, 1989):

Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1947, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci."

A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança..." e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história."

O nome da canção remete ao clássico conto de fadas dos irmãos Grimm, no qual duas crianças que se perdem na floresta por terem marcado o caminho com migalhas de pão e são capturadas pela bruxa malvada.

A música que servira de base para as cantadas de Sivuca seguiu outro caminho, aderiu ao universo infantil e acabou por abrigar uma conversa de crianças.

A canção não integrou o repertório de show de Elizeth. Não tinha mais cabimento. A primazia da primeira gravação coube a Nara Leão, princesa linda de se admirar, em dueto com o próprio Chico, arranjos de Sivuca, João Donato no teclado, Luizão Maia, contrabaixo, Meireles, flauta, o mesmo Sivuca no violão e na sanfona, e Paulinho Braga, bateria.

A música estourou com a participação na trilha sonora da novela Dancin`Days e, até hoje, não pode faltar nos shows de Chico Buarque.

Agora, era fatal que o faz-de-conta terminasse assim. Em 14 de dezembro de 2006, Sivuca sumiu do mundo sem nos avisar. A música brasileira perdeu um Mestre.


Pra lá deste quintal, com a abertura política, finalmente, a noite teria um fim. Chico Buarque, crítico mordaz da ditadura militar, agora era o herói.

Quanto ao cavalo que fala inglês, consta que o próprio Chico nunca soube muito bem o que ele mesmo quis dizer. De acordo com o amigo e parceiro Francis Hime, deve ser “um cavalo muito educado."