quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Os milhões de Renans

Escrito por Andres Viriato (*)


A surpresa com a absolvição do presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros, reflete uma indignação de última hora que não retrata fielmente o verdadeiro perfil de grande parte do povo brasileiro. Assim como Calheiros, a maioria de nossos políticos que se locupletam na vida pública são o retrato, em índole e estilo, da maioria de nosso povo, cujo comportamento no dia-a-dia busca sempre levar vantagem sobre tudo e sobre todos, ignorando o mínimo da ética e do respeito aos direitos alheios.


Nos cartórios, nas filas, no trânsito, no trabalho, no comércio e onde quer que se movimente, o cidadão, em sua maioria, é o retrato da maioria de nossos políticos, recorrendo, sempre que pode, ao imoral jeitinho brasileiro para usurpar vantagens individuais em prejuízo de terceiros, o que chamam de lei de Gerson; banqueiros e financistas cobram o que querem e como querem, inclusive mais de 10% ao mês do cidadão devedor, mas não oeferecem sequer 1% ao mês ao cidadão poupador, o que chamam de lei de mercado; no Estado, o devedor é executado e depenado pela “força da lei”, enquanto o credor, mesmo com o justo voto favorável da Justiça, sabe que, no mínimo, deixará seu direito líquido e certo como herança para netos ou bisnetos, se muito, o que eu chamo de tirania oficial, porque todo governo é tirano, independentemente de quem o ocupe.


Não bastasse a corrupção, a falta de respeito e de civilidade na vida brasileira é também reflexo de como o próprio Estado trata o cidadão comum, não somente usurpando-lhe direitos primários como jogando pelo ralo o grosso de seus impostos e institucionalizando a indecência e a impunidade em suas maquinações para atingir objetivos que só interessam a um pequeno grupo dominante. O desrespeito e o descaso com os direitos na vida brasileira é quase constitucional, porque demonstram ter respaldo do Estado e de quem manipula suas instituições.
A corrupção existe, quase que generalizada, na vida pública brasileira, porque o povo permite e com ela se identifica. Vendendo ou não seu voto, o eleitor dá voz e força a pilantras e inexpressivos aventureiros porque com eles se afinam, e essa afinidade nós percebemos diariamente no comportamento da maioria dos cidadãos, que somente não agem como seus eleitos simplesmente porque não têm a prerrogativa e o biombo de um mandato político. E o corrupto sabe que sua impunidade não será respaldada apenas por um Judiciário generoso mas também pelo eleitor que, na próxima eleição, o conduzirá novamente ao poder.
Tribunas e tribunais podem gerar a cultura da impunidade e da canalhice, mas quem a ratifica é o povo, seja revelando-se sua imagem e semelhança, seja oferecendo sua omissão conivente. A frágil educação doméstica, tanto quanto a formal, parece nos distanciar cada vez mais de uma harmoniosa solução constitucional para nosso quadro sócio-político. Não há padre, nem orixá nem caboclo a quem se queixar, porque vivemos numa simbiose mutualista de cumplicidades, tão sórdida quanto qualquer novela das 8.
Com a absolvição de Renan Calheiros e de muitos outros anteriormente, seria aceitável a qualquer ladrão, condenado ou não, pedir absolvição, assistido por legítima eqüidade. Mas o cidadão brasileiro não tem a consciência de que o Estado é ele, o País é ele, a Nação é ele e que governantes são passageiros e sazonais, que dependem do povo – e somente do povo -, de sua cultura e de sua força de trabalho para cumprirem seu mandato. Desde subtrair de uma escola um simples lápis do estoque oficial até o mais expressivo golpe contra o patrimônio, esta tem sido a natureza de grande parte dos cidadãos brasileiros no seu dia-a-dia. São milhões de Renans, que atestam que o Congresso Nacional não é mais que o retrato fiel de nosso povo.

(*) Andres Viriato é jornalista.